Sonho pela liberdade se transforma em disco de estreia com participação de Elza Soares e ganha curta-metragem
Foto por Larissa Zaidan
“Sonho… quem nunca teve um sonho?” Assim começa o álbum de estreia de Nego Bala, intitulado “Da Boca do Lixo“. A canção escrita pelo funkeiro aos 12 anos, na Fundação Casa, ganhou participação de Elza Soares e introduz uma sequência de oito tracks que nos remetem ao funk proibidão dos anos 1990. O som traduz o olhar de um garoto da Cracolândia – filho de uma mãe usuária de crack e de um pai batalhador – que estudou, trabalhou, viveu intensamente a rua e que acabou cedendo aos caminhos que pareciam mais próximos, como o crime, mas que encontrou na música a sua emancipação.
“Sonho” ganhou um curta-metragem dirigido por Douglas R. Bernardt, no qual Nego Bala revisita os dias que esteve privado da liberdade. É como se o disco, e toda sua essência, fossem condensados no formato da trilha sonora de uma obra audiovisual. Idealizado pela joint venture AKQA\Coala.LAB e produzido pela Stink Films (a mesma parceria responsável pelo vídeo de Bluesman, do rapper Baco Exu do Blues, vencedor de um Grand Prix na categoria “Entertainment for Music” do Cannes Lions), o filme está disponível no canal de YouTube de Nego Bala.
Quem, melhor que o oprimido, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora?” – “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire
A frase de Paulo Freire, citada por um jovem negro, introduz o curta. “Num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário”, continua ele. Em seguida, trechos das faixas “Vida Loka pt. 1” e “Vida Loka pt. 2“, do Racionais, compõe o curta. “Tenha fé porque até no lixão nasce flor“, é uma metáfora que se tornou literal para Nego Bala, nascido e criado na Boca do Lixo, região central de São Paulo.
O menino do morro virou Deus
No curta, Nego Bala salva sua própria vida e dá continuidade a sua descendência. Amarrando passado, presente e futuro, Nego conversa e faz as pazes com seu eu criança, contando para si mesmo as dores, as decepções, as frustrações e as dificuldades que ele enfrentará, mas avisa que no final as lágrimas serão de superação.
Demais faixas
“Paradoxo“, “Buraco no Céu“, “Cifrão In’Pé“, e a faixa-título “Da Boca do Lixo” foram feitas em um período em que Nego estava privado de sua liberdade (aos 19 anos, ele passou pela prisão). “Eu tava quietão e não me deixavam ficar na minha. Insistiram para eu mandar uma rima. Minha mente sempre tá a milhão, veio na espontaneidade e cantamos umas 30 vezes no corredor”, recorda ele sobre a criação de “Paradoxo”.
“Buraco no Céu”, surgiu em forma de improviso, algo recorrente no processo criativo do funkeiro. “Essa música foi como um fôlego para mim, eu tinha desistido de tudo naquele momento e ela veio”, recorda. “Cifrão In’ Pé chegou em uma tarde em que estávamos no pátio. Ela fala dos valores que vi em mim, mesmo estando sem liberdade”, define ele. “Fumando do Verde” traz a atmosfera do baile em uma viagem sonora.
Ao longo do trabalho, Nego Bala revela muitos aspectos de sua personalidade e diversos sentimentos que enchem o seu peito. Composta quando ele tinha 13 anos de idade, enquanto visitava sua irmã, “Anjo” apresenta seu lado romântico, por exemplo, e é resultado do exercício de criar a partir da escrita e não do improviso (recurso que sempre foi o ambiente mais confortável para ele). “É um lado meu que eu não tinha nem visto”, define.
Da “Boca do Lixo” exalta a autoestima da comunidade e mostra que a história do cantor vale ouro. Não à toa, o paulistano aborda resiliência, empoderamento e resistência. “Na cadeia, tem muito usuário que é do Centro. E os caras sentem fraqueza neles, chamam de nóia, de Cracolândia. Eu queria fazer uma letra que todos cantassem com orgulho. Uma semana depois, na visita, tava todo mundo cantando com orgulho”, ele lembra.
“Diumjeitodiferent” tem um significado especial para Nego Bala por representar a contestação de quando ele se percebeu MC. Isso porque, na quebrada, as pessoas pediam para ele cantar, mas como não tinha nenhuma canção registrada, ele sempre soltava uma rima diferente, que surgia ali na hora. Aos 10 anos de idade, durante uma tarde, próximo à Praça Princesa Isabel, em meio ao fluxo e com parceiros, entre eles o Bebezão, ele soltou a letra de “Di um Jeito Diferente” no improviso, só na palma da mão. “Eu cantei muito essa música na quebrada, então virou um hino”, diz. Quando foi registrar em estúdio, a canção virou o que Nego gosta de chamar de “ópera funk”.
“Som de Preto” é fruto de uma madrugada em estúdio. O instrumental veio antes em formato de beat, um boom bap produzido por Wagnovox, enquanto a letra foi feita no freestyle de ponta a ponta. “A ideia foi mostrar uma visão brasileira e consciente da coisa, então traz uma visão das antigas e também de agora, de se atentar nos recursos e na ancestralidade”, comenta o funkeiro.
Não foram poucas as vezes que Nego Bala falou que lançaria um disco quando estivesse em liberdade. Essa meta foi fundamental para que ele se mantivesse em equilíbrio, mas também serviu de inspiração para os seus parceiros de dentro da detenção. “Quando você está preso, a única coisa que você tem para se libertar é a música”, afirma o cantor, que, hoje, materializa seu sonho com o lançamento de Da Boca do Lixo – um trabalho em que Nego Bala participação de todo o processo, da idealização à produção musical.
Ouça ao álbum completo aqui:
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