Considerado por amigos e família como um homem de coração bom e sonhador, Tio Phil segue em liberdade, usando suas experiências de vida como combustível e inspiração para suas músicas. Hoje, o artista apresenta seu álbum de estreia, “Três Lados da Moeda”. O projeto de nove faixas, que tem produção assinada por Gustah, MXSC e Mineirin, traz um pouco da personalidade de cada colaborador, mas sem perder a identidade única de Tio Phil. As faixas refletem a história do trapper e falam sobre sua injusta prisão, traumas, superação, liberdade e sobre como o artista vem seguindo em frente.
Cada uma das músicas mostra a interpretação do artista para a mensagem principal de Tio Phil, narrando a vida de um jovem preto que foi preso injustamente.
Cada uma das faixas vem contando uma história de superação. Com um sentimento cru e sincero, elas falam sobre a realidade da injustiça e da superação, em melodias que fazem o fã sentir e imaginar tudo que acontece no mundo.
Em 2019, Tio Phil levou o maior golpe de sua vida e carreira quando foi preso injustamente por um crime que não cometeu e ficou encarcerado por 1 ano e 7 meses no Complexo Penitenciário de Gericinó, Bangu 10. Ele, que na época já trabalhava como músico e camelô, entrou para a estatística dos casos de prisões de inocentes, em que há falhas em procedimentos como, por exemplo, de reconhecimento facial. Na época, seus amigos e familiares se mobilizaram e lançaram a campanha #LiberdadeTioPhil, que resultou na concessão de sua liberdade, depois de muito trâmite e burocracias. Apesar das adversidades, MC Tio Phil não se deixou abater e retornou para a cena musical ainda mais forte e dedicado a mostrar seu valor.
Cria da Cidade de Deus, zona oeste do Rio de Janeiro, MC Tio Phil é um artista brasileiro de funk que possui uma bagagem musical forte e uma história de vida marcada pela superação, aspecto bastante explorado em suas letras. Trocamos uma ideia com o trapper sobre seu lançamento e também sobre sua passagem pelo cárcere. Confira:
1- Quem é Tio Phil? De onde surgiu esse vulgo?
Quando eu era mais novo eu era gordinho e careca. Eu sempre gostei de rimar e tinha grupo de pagode com a galera da escola, um dia eu tava numa aula de História, da professora Marta, com meu amigo Caio e eu chamava o meu amigo Caio de Will, porque ele mandava o corte quadradinho do Will Smith. Durante a aula, a professora mandou todo mundo calar a boca e o Caio levantou e fez um improviso “Lá vem o Rafael passando gordo igual barril, olha o que ela faz: Tio Phil”, pronto virou o Tio Phil. Todo mundo da escola, da favela onde eu sou cria começou a me chamar de Tio Phil de gastação e pegou.
Eu sai de casa muito novo, desde novo eu trabalho pra pagar meu aluguel, tudo certinho. Sempre apresentei Batalha de Rap, eu era apresentador de rodas culturais dentro da Cidade de Deus, a RCCDD, Batalha dos Crias, ambas batalhas que agora o movimento tá muito grande, graças a Deus. Em 2019, eu tava em ascensão na minha carreira, o MC Poze tava chegando, tava passando um tempo na Cidade de Deus, ele tava fazendo muito show por lá. Ele gravou um vídeo meu cantando a música “Hiprocrisia“, o vídeo bateu 700 mil views no Twitter e nisso eu fiquei em ascensão, todo vídeo que eu postava, batia. Então, eu comecei a fazer shows pela comunidade e veio essa covardia.
Me acusaram de tentativa de homícidio, quando eu consegui comprovar minha inocência eles me acusaram de um roubo de 2020, sendo que eles me prenderam no dia 02 de agosto de 2019. Ao longo de tudo isso, lá dentro, eu escrevi mais de 100 músicas, fato. Eu acho que tive três estágios lá dentro: veio a depressão por estar num lugar que eu nem esperava estar, depois bateu uma certa revolta de eu estar ali há um tempo e nada ser resolvido, e meu terceiro estágio foi quando eu resolvi canetar tudo.
Eu falei: Deus, o Senhor sabe do meu coração, o Senhor sabe que eu não cometi isso, então cada um tem seu fado pra carregar. Eis que cantou minha liberdade de uma hora pra outra. Então o Tio Phil é um personagem que me cura, porque tudo que me faz mal, em vez de eu querer debater de uma forma agressiva, que é o que as pessoas já esperam de um preto favelado, eu uso a arte pra me curar e para mostrar superação para as pessoas.
2- Existe um Tio Phil antes e um Tio Phill depois da passagem pelo cárcere? Como essa passagem se reflete na sua música?
Sim, com certeza. Antes, independente de eu saber que a maldade estava ali, eu não gostava de ver a maldade nas pessoas, eu falava com todo mundo. Eu sempre fui um cara brincalhão, carismático, meu nome artístico surgiu de uma brincadeira e eu levei de boa. E dentro da cadeia eu vi muita coisa, eu passei por muita coisa, e isso foi me distanciando, eu fui tendo um ranço do ser humano. Eu comecei a prestar atenção que o racismo está ali mesmo, que existe classes (sociais) sim, que infelizmente elas (as classes sociais) são separadas. Então eu comecei a lutar por essa causa e não de uma forma bruta, uma porção de gente já luta de uma forma bruta.
A arte cura e eu sei que eu consigo atrair a atenção das pessoas com a minha voz. Então, melodicamente, eu passei nesse álbum “Três Lados da Moeda” tudo que eu vivi antes da cadeia, a vida de um favelado normal, tem até uma track chamada “Vida de um Favelado”, sobre vivências, coisas boas e ruins. Falo sobre as coisas que aconteceram dentro da cadeia, na primeira track do álbum, “É foda”, nela eu vou falando tudo o que eu passava lá dentro e a minha vontade de sair de lá de dentro. Então são três lados da moeda: a minha versão, a versão do Estado e a verdade, porque ela sempre vem à tona. E toda história sempre tem outros pontos de vista.
3- Eu sou paulista e a estética da primeira faixa do seu álbum me lembrou as letras do funk proibidão das antigas da Baixada Santista, que também falavam muito sobre liberdade, quais são suas refs na música?
MC Smith, Tikão, Cidinho, General… Tem um cara também da minha pré-adolescência, com uns 11/12 anos, eu fiquei muito fã desse cara que é o WT da Cachoeirinha, ele era mais do funk proibidão de comunidade. Quando eu comecei, comecei a fazer funk proibidão inspirado nele, só que aí, pelo funk proibidão aconteceram muitas coisas ruins e eu parei, olha só como são as coisas. Tudo teve uma passagem na minha vida e cada pedaço da minha vida eu vou colocando na minha música. E melodicamente, porque eu creio que se as pessoas ouvirem as músicas e prestarem atenção no que está sendo falado, eu acho que mais pessoas vão prestar atenção no que está acontecendo.
4- Você começou no funk e hoje seu trabalho passa pelo trap, pelo R&B… como você foi se descobrindo em outras vertentes musicais?
Eu canto e componho desde meus 11 anos, mas eu cantava pagode, sempre fui fã do Exaltasamba, Thiaguinho, então… Eu, gordinho, pensava que era o Thiaguinho e vagabundo me chamava de Péricles, mas tá valendo, vamos pular essa parte (risos). Na escola com 11/12 anos eu montei com a galera uma banda de pop-rock, olha só… Pop Rock! E nessa mesma época eu comecei a frequentar um estúdio na comunidade, sendo que era mais funk, mais proibidão, e o que eu fazia? Eu pegava as melodias dos pagodes e fazia uma melodia pra um funk pra dentro da comunidade e isso foi chamando uma atenção tanto benéfica, quanto não tão benéfica assim.
Eu me sinto abençoado e dou graças à Deus por ter facilidade em compor, independente do gênero musical. Se a gravadora me pedir pra fazer um Sertanejo Universitário, eu vou sentar e vou escrever, se for um Funk, vou sentar e escrever, se for um Rap mesmo, aí já é minha zona de conforto, eu vou até fazer de freestyle. Eu sou um bom ouvinte, eu gosto de ouvir músicas e ritmos, então eu busco fazer música sem me agarrar a um gênero musical. Aí, depois que eu componho, eu vou vendo se vai ficar melhor pra Trap, se vai virar um R&B, se eu posso fazer um Funkzinho mais estilo São Paulo, que agora que eu tô morando em São Paulo, aí eu tô pegando o estilo do Funk de São Paulo que é bem da hora também.
5- Você diz que conseguiu superar o trauma de ter sido preso injustamente. Quais ferramentas você usou para superar esse trauma?
Graças à Deus, a galera do movimento Hip Hop de todas as rodas que eu apresentava e todas as rodas que eu ia só pra batalhar, porque eu sempre batalhei muito, eles levantaram a #LiberdadeTioPhil e fizeram passeatas e toda visita minha mãe ia com uma notícia diferente. Então, eu pensava que independente do que eu tô passando, quem me conhece sabe quem eu sou. Eu não vou dar o gostinho pro Estado ou pra quem é que tenha feito isso comigo, de fazer o que eles querem.
Eu sei a minha responsa, porque se tem pessoas me acompanhando, pessoas passam por coisas piores do que eu. Então elas vão pegar a minha história que é bem tenebrosa – preso injustamente acusado de dois crimes graves, a pena mínima desse caso de tentativa de homícidio são 15 anos – e eu sempre trabalhei e corri atrás de tudo o que quis. Então, eu acho que as pessoas vão pegar essa história e vão ver que tudo é possível, vão se revoltar menos e até culpar menos as pessoas ao redor e vão se preocupar mais com que elas podem fazer pra mudar a sua própria vida, a sua própria rotina. Essa é a minha responsa.
Quando eu sai de dentro da cadeia eu sabia que eu não poderia me revoltar por nada porque sempre ia ter gente me olhando. Minha mãe foi a única pessoa a ir no presídio, ela sofreu muito e eu jamais poderia dar esse desgosto pra minha mãe. Muito pelo contrário, se ela foi lá e ela sofreu, ela merece uma vida de rainha e é o que eu tô na pista pra buscar. Tô na pista pra buscar.
Sem falar da arte, a arte é uma cura de verdade, não tem outra parada. Muitas pessoas falaram que eu precisava de psicólogo, não discordo. Psicólogo é ótimo pra todas as pessoas. Porém, eu não passei por um psicólogo, fiquei preso quase dois anos e me sinto uma pessoa ótima. Acho que todo artista tem um pouquinho de loucura, mas Deus fez os loucos para confundir os sábios, né? (risos) Então tudo numa boa.
6- Em sua última entrevista pro RAP NA RUA você comentou que a música “150 no Maço” contribuiu para que você saísse da cadeia. Como você vê essa relação da sua arte com a liberdade? o Rap, o Funk salvaram a sua vida?
Sim, a arte salvou a minha vida e ela pode salvar a vida de milhões de pessoas, isso aí eu posso afirmar. De verdade.
7- No álbum você relata as suas vivências enquanto estava privado da liberdade. Como você resumiria a mensagem que você quer passar pra quem ouve o seu álbum?
Independente do que aconteça as pessoas tem que acreditar mais em si mesmas e só ir, eu não tenho muito o que falar. Eu já tô contando tudo o que aconteceu comigo e eu tô aqui. Eu não sou um moleque revoltado, quem me conhece sabe a minha índole, sabe do que eu corro atrás, o que eu quero pra minha vida e pra todos ao meu redor. Eu quero o bem, eu faço bem sem olhar a quem, eu acho que falta mais empatia no mundo, as pessoas precisam amar mais, tanto a si mesmas quanto ao outro ser humano pra que as coisas deem certo. Essa é a mensagem mesmo, amem, se curem.
8- Você fala sobre amor no álbum. Pretende explorar mais esse tema em seus projetos futuros?
Ultimamente eu tô compondo muitas tracks falando de amor, até porque é o meu momento atual. Eu tô vivendo a fase romântica, então isso é bom. Eu uso todo momento que eu vivo para me inspirar e escrever, e só nesses últimos seis meses eu já escrevi umas 40 músicas. Vamos ver no que vai dar.
9 – O que é o sistema carcerário pra você? O que ele representa e qual é a finalidade do sistema carcerário brasileiro?
O sistema carcerário brasileiro, pelo o que eu passei, é um sistema opressor. A cadeia, pelo contrário do que pensam, não melhora ninguém, ela só piora o ser humano. Até porque pelo tratamento que se recebe lá dentro, não tem como um ser humano melhorar. Eu que não fiz nada, eu apanhava, eu tomava tapa na cara dos funcionários, então imagina as pessoas que cometeram crime, vocês acham que ela vai sair de lá melhor? Não tem como. Então pra mim o presídio é um sistema opressor mesmo que tá ali pra torturar o ser humano, tenha ele cometido algo ou não. Eles não tão ali pra ver o que é certo ou o que é errado. Eles tão ali para quem tá lá dentro ser torturado mesmo.
10- O sistema carcerário é capaz de regenerar e ressocializar a pessoa que passou por ele?
Eu acho que tudo é possível, vai da fé da pessoa que tá passando (pela cadeia), porque pelo sistema, é o que eu tô te falando, é uma fábrica de monstros, não tem como a pessoa entrar naquele lugar e sair (bem), se ela não tiver uma fé muito forte. A minha visão é essa. Lá dentro eu compus muitas músicas e conheci pessoas que eram do crime e através das músicas que eu escrevia, eu deixava bem claro que eu ia sair, que alguma coisa de bom ia acontecer. Três dessas pessoas me procuraram aqui fora, uma delas trabalha numa concessionária e todas elas estão numa vida tranquila, graças à Deus. É até bom eu tá passando isso, porque eu falei sobre a fé de cada pessoa, eu tive fé e pessoas que eu vi lá dentro também, e pelo o que eu tô vendo elas tão seguindo uma vida tranquila, independente do que era a vida delas antes daquilo ali. Então tudo é possível, mas por mérito da própria pessoa, não do sistema.
11- Como você vai trabalhar o álbum a partir de agora? Tem show vindo aí?
Eu quero rodar todas as batalhas de Rap, que é de onde eu sai. Como eu tô morando em São Paulo, eu pretendo rodar todas as batalhas daqui apresentando o álbum e o Rio já é minha casa, então a galera das batalhas só tava esperando eu lançar o álbum pra começar a lançar as datas dos shows. E no show eu só vou cantar “150 no Maço”, que eu não posso deixar de cantar, e as minhas tracks do álbum, que é a pura verdade, “Três Lados da Moeda”, que aí eu vou passar tudo o que aconteceu até aqui onde ajudou o Senhor. O primeiro show que já tá agendado é na RCCDD, e eu tenho dois shows aqui em São Paulo, na Batalha do Helena e na Batalha do Tucuruvi. Eu pio direto na Batalha da Leste, então vou ver com os manos da gente supostamente fechar o show na Batalha da Leste, a meta é a gente alcançar a Batalha da Aldeia, mas nada é impossível.
RAP NA RUA muito obrigado por essa entrevista.
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